"...Cada um cria seu mundo dentro de sua visão e audição. E fica prisioneiro dele. E de sua cela, ele vê a cela dos outros."
-Karl Engel

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

Conto: Papel Acobreado

As vozes familiares vindas da sala inumdavam os ouvidos.
Doçura de se sentir em casa. E a janela aberta trazendo um pouco de vento. Um pouco de luz.
As coisas sobre a escrivaninha emitiam as mesmas sombras de sempre, exceto pelo porta-retrato com a foto da última neta, um presente.
Não estava sozinha, mas buscava um isolamento. Um relampejo de malícia lhe correu por sobre os lábios murchos. Só meu o momento, o quero só para mim.
O quarto de escrever era um útero, seu e da mãe ao mesmo tempo. Só que sem o cheiro de sangue.
Cheirava à ela. Colônia adocicada de moça misturada com o cheiro da velhice. A sua própria.
Olhando as unhas pintadas de rosa se estranhava por não reconhecer mais as manchas senis. A pele um relógio. Como o papel dos primeiros contos que se amarelava.
Agora ea era uma folha, quase cobre, prestes a rasgar com o movimento de passar as páginas, ainda que suave.
Um livro grosso. A mente a relia, evitando ser nostálgica, naquele que era o seu momento particular, e não queria pecar em se sentir melancólica.
"Cadê a vovó?" ela escuta. Sorri como uma menina marota.
A escolha de subir até o quarto de escrever já havia selado a despedida. Ela seria assim, sem adeus, só dela.
Nas mãos os escapulário e o medo infantil de ser avisada três dias antes de quando ia morrer.
Ainda não sabia sobre o Deus, ainda não fazia idéia de como seria depois, mas ela queria a Hora.
Cansaço. Não conseguia escrever. Era o momento da epifâne.
E haviam as coisas que tornavam doloroso continuar.
Queria poder voltar. Achar um lugar de reconhecer a si mesma em cada objeto ou marca na madeira, um copo de bebida, risco, corte. Os pingos de um cabelo molhado quando ainda era dourado. E ela ainda um pouco selvagem.
O gato, o cúmplice. O gato. Sem nome, pois já houveram muitos e a criatividade se foi. Eles também não precisavam ser chamados, eram parte dela.
O ronronar se confudia com sua própria voz.
Ele dormia na cômoda como sua existência simples permitia...apenas existir. E ter somente pequenos vínculos... mais ser do que sentir, na verdade. Ela, era a parte que sentia.
Um gosto lhe sobe a boca e ela começa a derreter. Se torna tudo ali, se torna lembrança.


Mariana Figueiredo

Um comentário:

Mariana Figueiredo disse...

Rituais de passagem sempre me atraem. Nessa ficção real, coisas de verdade se misturam à projeções. Filha caçula e temporona, a idéia de envelhecer é sempre presente em meus contos e outros escritos. Para inaugurar o blog, o conto que dá título a ele.

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