"...Cada um cria seu mundo dentro de sua visão e audição. E fica prisioneiro dele. E de sua cela, ele vê a cela dos outros."
-Karl Engel

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Relato: Compaixão

Qual a dimensão da dor? Imagino a Virgínia Wolf agonizando dentro da água. Alguém lançando-se da janela depois de um jantar em família, um revólver contra a têmpora, caixas e caixas de tarja preta. Penso em pessoas que ficaram doentes. Perda de movimento, uma criança com talidomida, uma casa onde passam fome. De onde vem os sorrisos ou as atitudes desesperadas? A depressão ou a euforia? Dói pensar que nunca compreenderemos o outro. Como mesurar esse tipo de coisa. Como saber se alguém que morre de frio na rua sofre tanto quanto alguém que teve um dia muito ruim e não conhece outra dor, senão essa? Certamente teríamos compaixão pela primeira e nenhuma pela segunda. Então, afinal, o que é compaixão? Será que depende da nossa percepção da dor?

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Conto: Duas Amigas

A velha contemplava o sofá e aos poucos ia se permitindo ser saudosista, assim como às vezes colocamos um cigarro na boca junto com o gosto da liberdade de ser. Lembrava de quando a mobília ainda tinha cor e ela tinha homens. Hoje, ela só tem a gata. Uma tem a outra.
Mas as coisas vão perdendo o prazer e vai se perdendo o prazer das coisas. A gata e a velha já nem mais conversavam. As quatro horas a comida era despejada na vasilha e a gata sabia que, quando se deitasse perto da velha ela lhe correria na barriga as mãos. Não havia nojo entre elas. A gata por vezes assistia a sua dona no banheiro e elas se beijavam mesmo que uma das duas amigas fizesse seus banhos com a língua suja de rato e pasta de atum. A carne da geladeira por vezes ficava roxa e ainda assim era comida para não ter desperdício. Gostavam de iogurte de morango pela manhã.
À gata havia sido negado um nome, em um dia de pura crueldade. A velha tinha esperado muito por alguém e como essa pessoa nunca chamou o seu nome de novo assim, vingou-se na própria gata, na época um bichinho de nada. Quando a sobrinha lhe perguntou o nome daquele pacote de pêlo, ela disse simplesmente "gata" e de seu lábio gotejou um sorriso malicioso que certamente a deixou mais moça.
Mas a gata era macia e tolerante. Seus bigodinhos eram engraçados e ela nunca permitia que os ratos entrassem dentro da casa. A velha foi tomando um amor pela criatura, que a tratava com a consideração que se deve ter por um ser humano, mesmo que não tivesse ela um nome para si.
A gata era esbelta e conseguia fugir das travessuras dos meninos das vizinhas. Já a velha, que era mais frágil e débil, sofria muito por ser chamada de bruxa(no fundo ela adorava crianças) e tinha sempre que engolir a vontade de dar a garotada alguns tostões para limpar o quintal.
A casa toda não tinha nada de valioso, a não ser a memória, e era rodeada só por uma cerca de arame farpado. O mato grande dava mesmo ao lote um aspecto de abandono. A grande mesa de madeira e algumas cadeiras velhas apodreciam em meio a garrafas e entulhos deixados por mendigos(que por vezes dormiam no quintal).
A anfitriã os observava -sempre com receio- da janela da sala, e como sua expressão era doce, eles nunca a feriam ou usavam o quintal para obscenidades e escatologias. Na verdade, o que a velha gostava, era de ficar observando as garrafas: vaga-lumes azuis, marrons e verdes reluzindo, reluzindo na noite preta.
Uma vez por mês ela recebia uma visita de verdade, uma especial. A sobrinha Agnes. Arrumava a mesa com flores e comprava pão novo. Quando mais saudável fritava pastéis. Agnes e ela se divertiam como duas moçinhas. Contavam muitas histórias. E a velha sabia que a sobrinha a visitava secretamente, sem os meninos e o marido, para poder se permitir ser criança de novo.
Por vezes elas faziam brincadeiras, como origami e papel machê. Ou então, jogavam baralho valendo cigarros ou um gole de bebida(a mais nova sempre se empenhava muito para ganhar por causa da saúde da tia). A colônia da tia tinha um cheirinho bom, misturado com velhice mas que fazia lembrar de como ela foi bonita de um jeito exclusivamente seu. E com os olhos de menina, Agnes- cordeiro em Latim- via aquela tia sem rugas, com seu rosto cheinho e o cabelo de favo de mel, sorrindo como se ainda tivesse todos os dentes.
Um dia caiu muita chuva e por toda a casa se escutava o plic plic plic das goteiras enchendo os baldes. O mato virou um brejo e os ratos sumiram por um tempo, deixando a gata um pouco mais carente e gulosa do que o habitual. A velha sentiu uma vontade egoísta lhe crescer dentro da barriga, uma vontade de se mudar para uma casa menor e melhor. De deixar a gata. Mas quando ela olhou para as pernas, e sentiu o roçar, os olhos grandes, um pouco mais magra, seu coração se encheu tanto de amor que chegou a doer. E nos outros dias de chuva ela nem mesmo se importou dos baldes transbordarem. Vai ter mais pernilongo picando a meninada!- se consolava.
Quando a gata morreu fazia um sol de dar dó. Os ratos já tinham até voltado aos entulhos. A velha sofreu tanto que murchou. Chorou. Nem assistiu a novela. Nem olhou, lá fora, os casulos de mariposa da roseira selvagem. Quis ficar doente. Deixou de tomar o remédio e dormiu oito dias sem cobertor.
Mas poucas pessoas são donas da sua própria Hora e não foi diferente com ela. Agnes viu a tia tão amuada e fraca que aos poucos parou de visitá-la. A tia não a censurava pois nunca gostou do cheiro que a velhice lhe deu. E também sabia que as pessoas têm suas próprias vidas, e as pessoas que elas criam costumam ser a vida delas. Ela só havia criado a gata e o mato. Aquele casarão de cerca e móveis desbotados. Tinha consciência de seu temperamento difícil e das coisas que preferiu cultivar ao invés de cultivar gente.
Decidiu escrever um testamento. Sabendo que a sobrinha vivia em uma casa muito na cidade, espremida, deixou à ela tudo que tinha. A casa, afinal, era grande e o quintal se bem cuidado viraria um ótimo lugar para os filhos brincarem.
No mesmo ano Agnes se mudou. Mais pela tia morta do que por ela mesma, que antes estava só a dois quarteirões do trabalho. Tiveram que vender muita coisa para reformar a casa, mas no final, ela ficou tão boa e alegre, que deu à sua caçula o mesmo nome da tia(que nem era um nome bonito). Nem se lembrava que houve uma gata um dia.

Seguidores