"...Cada um cria seu mundo dentro de sua visão e audição. E fica prisioneiro dele. E de sua cela, ele vê a cela dos outros."
-Karl Engel

domingo, 16 de março de 2008

Relato: O Tempo.

Como possui efeitos anestésicos esse tal tempo. A memória dos cheiros, dos gostos, das cores se desfaz em espirais de cabelos que crescem à medida que anoiteço o meu corpo, a minha casa. A medida que me entrego às entranhas sinistras desse ser que é o silêncio. Que é a consciência de que as coisas são efêmeras. Ah! Doce efêmeridade. Diferente de querer morrer é ter a consciência da morte, da minha morte... e das coisas que não são eternas. Nem ao menos sentimentos. O tempo, senhor de tudo, se encarrega de torná-los brandos. A saudade deixa de ser saudosismo melancólico e se torna resignada e fria... como meus lábios. Me divirto em pensar que retornei ao meu momento de auto suficiência, ainda que tenha sido arduamente criticada por ele. Não preciso muito de ninguém além de mim.... porque, nesse momento atual de lucidez, eu decido o quanto quero ter dos outros em meu desígnio. Até que um dia seja traída pela minha sensibilidade de novo. E de novo. Em algo cíclico e no entanto, incerto. Essas marés de rostos e corpos. Essa solidão burlesca... onde nada se destaca além do rosto da minha dor. Tenho sido uma pessoa enjoativa para os meus amigos... por anos e anos. Qual é a verdade sobre mim e as pessoas? Sinto me sem habilidade para lidar com o que se segue. Sem controle dos meus muitos personagens.... e a vida segue. E o tempo leva tudo, tudo.

terça-feira, 11 de março de 2008

Odes

Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio. Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas. (Enlacemos as mãos.) Depois pensemos, crianças adultas, que a vida Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa, Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado, Mais longe que os deuses. Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos. Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio. Mais vale saber passar silenciosamente E sem desassosegos grandes. Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz, Nem invejas que dão movimento demais aos olhos, Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,E sempre iria ter ao mar. Amemo-nos tranquilamente, pensando que podiamos, Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias, Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro Ouvindo correr o rio e vendo-o. Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as No colo, e que o seu perfume suavize o momento - Este momento em que sossegadamente não cremos em nada, Pagãos inocentes da decadência. Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-as de mim depois Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova, Porque nunca enlaçamos as mãos,nem nos beijamos Nem fomos mais do que crianças. E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio, Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti. Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim - à beira-rio, Pagã triste e com flores no regaço. (Vem sentar-te comigo Lídia, à beira do rio- Odes- Ricardo Reis)E tudo mais que se escreva é saudade e um pouco de esperança, que as coisas funcionem para nós todos, enlaçando as mãos ou não.

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